quinta-feira, 24 de setembro de 2015

a velha companheira



Tiro as mãos dos bolsos de meu moletom e sopro lentamente sobre elas, na esperança de esquentá-las um pouco. Deveria ter seguido o conselho da minha mãe e colocado luvas. Na verdade, deveria ter colocado meias também, e tênis- meus pés parecem congelar dentro das minhas alpargatas de pano fino. Assim como meu corpo inteiro.

São onze horas de uma noite de sábado. Eu poderia estar em qualquer lugar, mas por algum motivo que nem eu mesma sei direito, estou sentada no último banco de um ônibus vazio. Estou aqui desde às sete da noite, rodando pela cidade de terminal a terminal. Vi pessoas entrando e saindo, crianças, adultos, velhos e adolescentes. Sempre vindo de qualquer lugar e indo pra lugar nenhum. Entre eles, alguns conhecidos, com os quais tentei não estabelecer contato visual, rezando para que não tivessem a ideia de sentar ao meu lado. Encosto minha cabeça na janela, perto de um desenho de um boneco-palito que fiz no vidro embaçado. A chuva lá fora aumentou, fecho os olhos para escutar o barulho.

“Moça?”

Abro os olhos. Vejo de pé, em frente à catraca, o motorista, um homem calvo e grisalho que parece ter uns 60 anos, cujo semblante uma mistura de simpatia, compaixão e, quem sabe até, preocupação. Parece uma boa pessoa. Pode parecer bobagem, mas eu gosto de pensar que sei reconhecer boas pessoas. Me ajeito e tiro meus pés do banco. 

“Sim?”

“Vou dar um parada de uns quinze minutos. Tudo bem?”

Balanço a cabeça positivamente e o homem desce do ônibus. Olho pela janela. Só agora percebi que estamos parados ao lado de uma lanchonete. 

Sinto meu celular vibrar no bolso da calça. Provavelmente uma ligação de alguns dos meus amigos, e eu não preciso atender pra saber que se trata de um convite para ir a algum lugar cheio de gente e música ruim num volume ensurdecedor, o tipo de lugar que eu costumava frequentar antes, mas agora não faz o menor sentido pra mim. Além disso, eu sei que eles me convidam para aliviar sua consciência, não é como se realmente fizessem questão da minha presença. 

É engraçado. Antes eu só tinha ouvido falar nos livros, filmes e músicas dessa sensação de estar cercado de pessoas, mas sempre sozinho. Mas é assim que eu tenho me sentido há algum tempo. Exceto, talvez, por uma presença incômoda e constante. 

Não sei dizer ao certo quando nem como ela entrou em minha vida. Mas acho que está comigo desde que nasci. As primeiras lembranças que eu tenho dela são de quando eu era muito nova. Ela estava lá, no meu primeiro dia de aula na escola, quando eu soltei a mão da minha mãe e entrei pelo portão. Nas noites que eu passava lendo, sozinha no meu quarto, ela sentava ao meu lado, na cama, para escutar as histórias. Nas noites frias em que eu não conseguia dormir, ela deitava ao meu lado e me abraçava, até eu que eu finalmente pudesse pegar no sono. Até nos momentos em estava ausente- os raros momentos realmente felizes da minha existência-  ela sempre mandava algum sinal, ao menos uma carta, para que eu não me esquecesse que ela voltaria. Ela sempre volta. 

Olho para o lado. Ali está ela, como sempre, a única que nunca me deixa só. Sorrindo gloriosa. E nesse momento, mais forte, maior e mais perto do que nunca. Prestes a me abraçar. Em outra ocasião, eu tentaria afastá-la de alguma maneira, fazê-la ir embora. Mas agora estou cansada de lutar contra ela ou tentar ignorar sua presença. Talvez a melhor opção seja aceitá-la de vez como uma velha companheira, o que na verdade, ela é. 


“Li-licença”


Dou um salto. Percebo então que o motorista do ônibus está parado na minha frente. Me preparo para a enxurrada de perguntas sobre o motivo de eu estar aqui sentada há mais de quatro horas fazendo absolutamente nada. Por onde começo a explicar?


O senhor me encara, um tanto hesitante. E para minha surpresa, não faz qualquer pergunta. Apenas estende um pequeno copo de isopor. 

“Trouxe um pouco de café pra você. Tá fazendo cinco graus lá fora, menina, você deve estar congelando!”

Pego o copo de suas mãos. Só percebo o quanto meu corpo está frio ao dar um gole no café. Quente, doce. O homem sorri amigavemente, e há mais do que compaixão em seu olhar. Há compreensão. Em seus olhos, há doçura, mas também há muito mais. Reconheço em seus olhos uma expressão com a qual estou mais familiarizada do que gostaria. Percebo então que, apesar de sermos diferentes, somos iguais. 


“Obrigada”.