quarta-feira, 21 de outubro de 2015

entre tudo




deve ter algum motivo por que 
entre tantas pessoas possíveis
estamos sob o mesmo teto, eu e você

na mesma sala 
no mesmo apartamento, 
no mesmo prédio, 
na mesma rua
na mesma cidade, 
no mesmo estado, 
no mesmo país 
no mesmo planeta 
no mesmo momento

entre tantos planetas possíveis
e dias e horas e séculos
e prédios 
e calçadas 
e continentes, 
e planetas, 
e conjuntos de planeta 
e galáxias, 
e universos pararelos

ou talvez, seja só coincidência mesmo 
talvez não exista motivo algum
de qualquer forma, já que estamos aqui 
que tal um vinho? 

(também tem chá se você preferir) 

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

mobília


Era uma vez uma menina chamada Marília.
Ela era tão invisível, que quase fazia parte da mobília.

Ilustração: Yasmin Moraes, da página Com amor, yasmin

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

pra você não ir embora

fica mais um pouco, eu fiz café
fica mais um pouco, tem um livro que eu quero te mostrar
fica mais um pouco, o trânsito é horrível a essa hora 
fica mais um pouco, tá quase pronto o jantar 

fica mais um pouco, quem sabe até o amanhecer 
fica mais um pouco, agora que estamos a sós 
fica mais um pouco e deixa eu te dizer 
fica mais um pouco, eu preparei uma vida pra nós

never grow up



Em uma tarde, sentei pra tomar café na lanchonete da escola de música onde faço aulas de piano às segundas-feiras. Fazia bastante frio, apesar do tempo ensolarado- meu tipo de clima preferido- e tudo que eu queria naquele momento era pegar o próximo ônibus para ir à faculdade e não me atrasar para a aula. 

Na mesa ao meu lado havia uma mulher com suas duas netas gêmeas. Ambas aparentavam ter seis ou sete anos, estavam vestidas com uniformes de balé e comiam mini-pizzas de sabores diferentes. Havia alguns cadernos espalhados sobre a mesa, e percebi que a avó se esforçava para ensinar matemática às meninas. Pude presenciar, então, a alegria das duas ao descobrirem quanto é meia dezena. 

Eu sei quanto é meia dezena. E uma dezena. Sei quanto é o dobro de uma dezena, sei quanto são dez dezenas. Sei quanto é uma centena e uma centena de milhar. Sei quantos países existem no planeta e quantos planetas existem no sistema solar. Sei amarrar os cadarços e pagar um boleto. Sei de onde vêm os bebês e que a mistura de verde com vermelho é marrom. Sei que as nuvens, na verdade, são conjuntos de partículas de água e as estrelas são enormes esferas de plasma.

Adoro saber das coisas que eu sei. E gosto mais ainda de todas as coisas que eu ainda vou aprender, ou aquelas que eu nunca saberei. Mas às vezes, quando tudo fica meio esquisito, tudo que eu queria era estar no lugar daquelas menininhas por um momento. E de todas as outras menininhas e menininhos que não fazem ideia do que o mundo lhes reserva, como se o mundo todo fosse um grande e inexplorado parque de diversões. 

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

rótulos



Helena rói o cantinho das unhas quando está ansiosa. Ela tem uma pinta em formato de coração um pouco abaixo da nuca e chora toda vez que assiste a Sociedade dos Poetas Mortos. Sonha em conhecer a Europa e queria ser pintora, mas descobriu que não era sua real vocação e acabou virando bibliotecária, por causa da sua paixão pelos livros. Helena não gosta muito de sair à noite e bebidas alcóolicas, e por esse motivo, as pessoas costumam chamá-la de certinha.

Sylvia adora ouvir as histórias dos amigos e é uma ótima conselheira. É viciada em blues e tem uma coleção de discos de vinil. Chora escondida todas as noites, de saudade da família que ficou em outro estado. Nunca acerta o delineado no olho- um lado sempre fica diferente do outro. Sylvia gosta de sair com várias pessoas e não acredita muito em relações monogâmicas, e por esse motivo, as pessoas costumam chamá-la de promíscua.

Adélia tem a risada mais esquisita do mundo e uma cicatriz na perna, da vez em que caiu de bicicleta quando adolescente. Ama ir à praia e a sensação da areia entre os dedos. Poderia até ficar um dia sem comer, mas não passaria um dia sem tomar café preto. Gosta de ouvir todos os tipos de música- de sertanejo a rock- e mantém diários desde que aprendeu a escrever. Adora cuidar da casa e dos filhos enquanto o marido trabalha fora. Adélia é casada há mais de quinze anos, e por esse motivo, é conhecida como mulher do João.

Clarisse gosta de chocolate e acordar cedo para sentir o "ar da manhã". Aparecem "covinhas" em sua bochecha toda vez que ela sorri. Ela tem como hobby procurar anúncios de apartamentos em classificados e tem um gato chamado Gato, em homenagem à Audrey Hepburn, sua atriz favorita. Faz trabalho voluntário em uma ONG de proteção aos animais. Clarisse gosta de moda e maquiagem, e por esse motivo, as pessoas costumam chamá-la de fútil.

Martha faz o melhor pudim de chocolate do mundo inteiro, segundo seus netos. Gosta de novelas, seriados, política e olhar as estrelas. Tem as amigas mais engraçadas e seu irmão como maior confidente. Sabe consertar eletrodomésticos e fazer tricô. Martha não tem medo de expor sua opinião e refutar a de alguém quando acha necessário, e por esse motivo, as pessoas costumam chamá-la de agressiva

Quando as pessoas vão entender que somos muito mais do que os meros adjetivos aos quais nos querem reduzir? Somos mais do que arquétipos e rótulos. Somos seres complexos, cheios de nuances. Temos corações pulsantes e mentes pensantes. Somos mais do que a irmã, a mãe, a namorada do protagonista. Somos o protagonista. E se recusar a enxergar tudo isso por não conseguir nos entender em toda nossa subjetividade, isso sim é futilidade.