domingo, 20 de dezembro de 2015

segunda


"Obrigado, seu Juca!"


Marcos abriu a mão enquanto o senhor simpático detrás do balcão depositava algumas moedas em sua palma. Com o café na outra mão, ele se dirigiu à mesa de sempre-- a do canto mais isolado -- da padaria de sempre, a Doces Sonhos. Após limpar as lentes redondas dos óculos com a manga da camisa, ele tirou da bolsa estilo carteiro (com a qual Luisa, sua namorada, implicava, mas poxa, era tão prática) o jornal do dia e passou os olhos pelas manchetes, ainda sonolento demais para realmente ler alguma coisa.


Assassinato. Desastres naturais. Mais assassinato. Violência. Acidentes. Mais assassinatos.


Ele passou a mão pelos cabelos pretos. Lembrava-se bem de quando era adolescente. Tinha um propósito. Queria fazer a diferença, viajar o mundo. Queria inspirar as pessoas. Contar histórias.


Ele definitivamente não era mais a pessoa que costumava ser. Tudo aquilo parecia tão tolo e ingênuo para ele agora. Seu maior objetivo no momento era pagar todas as contas e alimentar o gato. A falta de liberdade no emprego (um jornal de posições políticas duvidosas), a necessidade e o mundo levaram embora sua inspiração, e trouxeram no lugar olheiras e um niilismo permanente. As coisas pareciam cada vez mais efêmeras e sem sentido para ele.


Ele era só mais um tijolo no muro.


Pelo menos, ainda tinha café todas as manhãs.


A 32 km, do outro lado da cidade-- mais especificamente no quinto andar de um prédio estreito e cinzento, igual a tantos outros que se esparramavam pela cidade --Clara também tomava café, ainda na cama. As dezenas de bolinhas de papel empilhadas no lixo evidenciavam o que ela já sabia (e o cansaço provavelmente não a deixaria esquecer o dia todo): tinha sido mais uma noite daquelas.


Ela sempre fora uma pessoa noturna, tal qual sua inspiração, que parecia ter vontade própria. Na noite anterior, eram duas da manhã e ela finalmente estava prestes a cair no sono, quando sua mente lhe acordara com a ideia para um conto. Em outra ocasião, ela provavelmente viraria de lado e dormiria. Mas ela sabia que não poderia se dar a este luxo depois de dois meses presa em um bloqueio criativo. Então, meio contrariada, levantara da cama e sentara-se na escrivaninha bagunçada para atender ao chamado do lado direito do cérebro.


Tudo que ela conseguira escrever fora sobre alguém que conhecera havia algumas semanas, em uma noite em que ela não esperava nada além da hora de ir embora.


Aline e Marcela sabiam o quanto ela detestava aniversários. Mas isso não as impedira de arrastá-la para a festa de um semi-conhecido, em uma casa desconhecida, enorme e assustadoramente cheia. Logo ao chegar, depois de cumprimentarem o aniversariante, suas amigas encontraram outros amigos e se esqueceram de apresentá-la, deixando-a desconcertada em algum ponto entre a sala e a cozinha. Ela então, resolvera pegar uma cerveja e sentar-se em um canto da sala, próximo à janela.


Com os olhos vidrados no tosco jogo de Tetris do celular, ela quase deixara de perceber que ele se aproximara. Quase. Um perfume leve e meio adocicado chamara sua atenção, e no momento em que olhara para o lado, encontrou-o. Ele sorria para ela, fitando-a com suas duas esferas muito escuras por trás de um óculos de lentes engraçadas. Ela oferecera-lhe um gole de sua bebida, e ele aceitara, meio tímido.  


Não demorou muito para que eles estivessem sentados no parapeito da janela, alheios a qualquer som que não fosse o das vozes um do outro. Falaram sobre astrologia, literatura, televisão, cinema, política, animais de estimação, comida e sobre a chuva fina que caía lá fora. Ele tinha uma risada estranha, um senso de humor peculiar e uma visão tão idealista do mundo. Era o tipo de pessoa que cativava mesmo sem querer. Clara poderia ouvi-lo falar por horas.


Ao chegar em casa naquela noite, Clara se jogara na cama e passara um bom tempo encarando o teto.  Sentia-se empolgada e relaxada ao mesmo tempo. Não conseguia parar de pensar naqueles cabelos pretos e óculos redondos.


E desde então, Clara tem escrito sobre aquele adorável estranho. Não sabia quando, ou se, o veria de novo.  Tudo que ela tinha era um nome, mas ela precisava ter mais um pouco dele. E aquelas páginas escrita em caneta preta eram a única forma de trazê-lo de volta.

Por algumas horas, ele havia balançado sua vida de forma que muitas pessoas nunca fizeram durante anos.